
Filha de um produtor de café em Botucatu, viveu na fazenda até a libertação dos escravos, ocasião em que estava com 13 anos de idade. Distante da política, das notícias e novidades, seu pai só ficou sabendo da Lei Áurea algum tempo depois de ter comprado um grande lote de escravos do próprio irmão, que morava perto de São Paulo e era muito mais bem informado. Como havia feito o pagamento com suas últimas reservas, já que a safra do ano ainda estava no pé, ficou sem o dinheiro e sem mão-de-obra para a colheita. Assim, rumou com a esposa e as duas filhas para São Roque, onde tinha alguns parentes.
O que aconteceu entre São Roque e São Paulo é, para mim, um mistério (quem mandou não perguntar enquanto podia?). O fato é que a história continua no bairro da Lapa, em São Paulo, com Antonia já casada com José Pereira, que era a mais alta autoridade policial do bairro. Na época a Lapa abrigava muitos ingleses, por conta das oficinas da São Paulo Railways. E, como policial, vira e mexe José era obrigado a deter certo playboyzinho arteiro, filho de um dos engenheiros da Estrada, cujo principal divertimento era apedrejar a iluminação pública.
Como naquele tempo quem fornecia a comida dos presos era a própria família - e a família do adolescente em questão preferia deixá-lo com fome - cada vez que ele era levado à delegacia, José - ao chegar em casa para as refeições - já ia pedindo à Antonia que preparasse uma boa marmita porque o inglesinho estava preso de novo.
José Pereira morreu muito cedo, deixando D. Antonia ainda jovem, com 4 filhos pequenos. Mas, embora tenha saído de cena bem antes da hora, até hoje é o grande responsável por muita coisa importante para este mundo. Se não fosse o Zé Pereira, por exemplo, de quem seria este blablablas?

Enquanto isso, o filho do engenheiro foi convocado para uma guerra inglesa na África. Conseguiu voltar depois de ter comido o pão que o diabo amassou e, tão logo arrumou um emprego na Estrada, foi convocado para outra. Só que dessa vez ele se recusou a ir e, como o pai e o Reino Unido em peso o acusaram de covardia, decidiu cortar relações com todos eles e começou saindo de casa.
Onde o inglesinho foi morar? Na pensão da D. Antonia, é claro.
Embora ele fosse anos mais jovem, os dois se apaixonaram. Decidiram acabar com a pensão e passaram a viver em pecado. Não tiveram seus próprios filhos porque Henry, ou vô Henrique, pra nós, ficou estéril durante a tal guerra. Mas foi o homem que manteve, educou e acabou de criar o avô da Pereira e seus três irmãos. Por isso foi reconhecido como pai, avô e bisavô por todas as gerações de Pereiras que vieram depois.
Embora a Vó Antonia fosse viúva e o Vô Henrique fosse solteiro, só vieram a se casar quando a Pereira já estava com seus 13 ou 14 anos - e apenas para que ela tivesse direito a pensão, caso ele viesse a faltar.
Não sei quando esta foto foi feita, mas acredito que a Pereira ainda demoraria muito pra dar as caras neste mundo (se Antonia estivesse com 70, aqui, o clique teria sido de 1945).
Uma grande mulher que eu conheci muito bem, e que morreu aos 102 anos sem mudar grande coisa desta foto até lá. E parecida com a Hebe o bastante para que eu desconfie que esse sobrenome Carmargo tenha partido do mesmo lugar.
ELISEU E SUAS DUAS ESPOSAS

ENQUANTO ISSO, NA HUNGRIA…

Arrasada, Suzana decidiu que jamais se casaria: foi para Budapest, diplomou-se como parteira e voltou para a sua cidade, disposta a passar o resto da vida ajudando mães e bebês. Mas tal decisão só durou até o dia em que ela estava na varanda quando um cavaleiro a galope saltou a porteira da sua casa, tão aflito que estava em busca de socorro para a irmã que entrara em trabalho de parto.
Nem é preciso dizer que ela e o cavaleiro se apaixonaram, se casaram, tiveram sete filhas e um menino para arrematar. Quando o menino ainda era bem pequeno, não sei como José - aquele intrépido cavaleiro de anos passados - conseguiu ser atropelado pelo único automóvel que havia na cidade. Mas o fato é que conseguiu e morreu por causa disso.
Os tempos, que já não estavam nada fáceis, só foram ficando cada vez mais complicados: além da queda da monarquia, como país vencido na I GUerra Mundial, a Hungria perdeu 2/3 do seu território. No meio do fogo cruzado entre comunistas, republicanos e monarquistas, a família decidiu que seria melhor tentar a vida em outro lugar. Três filhas casadas partiram primeiro, com seus maridos. Como a rota começava pela Itália, onde embarcavam no primeiro navio que fosse para a América, uma delas foi parar na Argentina e as outras duas, que estavam juntas, nos Estados Unidos. Meses depois Suzana se despediu das quatro restantes, que acabaram ficando no Brasil. Ela própria partiria com o caçula assim que recebesse a indenização pela morte do marido, que já fora determinada pela Justiça. Só que neste meio tempo os comunistas venceram e, além de não receber, ela também não conseguiu mais sair. E foi assim que uma das bisavós maternas da Pereira foi parar atrás da cortina de ferro. Ou melhor: a cortina de ferro é que se instalou em volta dela.
A IMPORTÂNCIA DO TRATADO DE TRIANON SOBRE A EXISTÊNCIA DA PEREIRA.

Um conde, aliás, que ficou trancado para fora do próprio país quando a Hungria teve que ceder o território da Transilvânia para a Romênia no Tratado de Trianon. E como o jovem conde, então com 16 anos, se recusava a servir o exército romeno, estes meus bisavós maternos que você vê na foto não se opuseram a que ele fugisse. E ele fugiu para cá.